Hoje a Biblioteca abriu suas janelas. O dia amanheceu bem disposto de um vento frio e cálido. Por isso, resolveram os coordenadores renunciar ao ar condicionado, e deixar que a brisa do dia novo climatizasse o espaço dos livros e de seus leitores.
As janelas abertas trouxeram do verde das praças os pássaros. Varavam o ar pelas janelas e entravam sutis. Mas depois de um tempo já estavam fazendo ninho entre Shakespeare e Vinicius de Moraes; e alguns leitores já não mais conseguiam desperceber o eco que o canto dos vários espécimes entoava. Coroando o saguão, o som tinha a amplitude dos sinos de igrejas, mas não faziam doer os ouvidos e nem o juízo. Era um canto alegre e amanhecedor.
Em pouco tempo, os interesses de todos já não eram mais os livros e suas estórias, mas sim os pássaros e seus cantos. Enquanto isso, eu que já havia percebido e me encantado a tempo com aquela invasão mágica, percebi um movimento gracioso de calcanhares entre as primeiras prateleiras em que eu me encontrava.
Atento, encontrei, além de mais pássaros e ninhos, duas pessoas se segurando pelas mãos. Buscavam algo que na hora eu não compreenderia. Na frente ia uma menina, a qual parecia pertencer toda a decisão da busca. E quase pisando nos calcanhares da frente, um menino que parecia tão surpreendido com a caminhada, como os outros com os passarinhos.
O passo apressava-se, e cada prateleira deixada para trás era um adeus que davam ao mundo. E me escondendo no canto dos pássaros, que ecoava cada vez mais forte e tenso como passos à procura de sossêgo, eu os vi parar.
E pararam na última estante onde só poderiam ser vistos por livros e por mim, que os via atrás dos livros de Ornitologia. Pararam e, logo, se encostaram num desejo invejável de paixão impossível. Os lábios se tocaram, e foi aí que eu vi literatura nos lábios alheios. Aquele beijo, entre tantos livros, me encheu de uma poesia única e imensa. Senti Federico Garcia Lorca dentro de mim. Antonio Maria pulsar nas minhas veias apaixonadas. As palavras do Gabriel Garcia Marquez nunca fizeram tanto sentido. Vinicius estava nas minhas mãos. E as letras do Chico Buarque passavam por meus olhos contando com palavras aquela estória que eu via na minha frente.
Sim, amigos, eu vi literatura nos lábios alheios. Estarrecido, o beijo foi andando de volta. E eu continuei no cenário daquela ilusão que nunca me pareceu tão verdadeira. Aquele momento tomou-me durante todo o dia. E muita vezes me perguntei se os pássaros conspiraram para que aquele mar de palavras em forma de amor se materializasse à minha frente. Ou se teriam os amantes armado a visita dos pássaros, espalhando alpiste nas estantes, para despistar a atenção da burocracia arcaica que proíbe o beijo entre os livros, e eu apenas como um intruso de aventura alheia, tivesse encontrado literatura onde não haveria de ter. Não sei dizer mais. Não sei pensar muita coisa agora. Não sei quem são. E nem me lembraria a face se os visse de novo.
Só sei que aquele romance visto hoje de manhã não me abandonou a retina. E ao chegar em casa corri à minha estante e tentei reviver tudo nos livros que tanto guardo. Tentativa infundada. As palavras, sim, eu compreendia melhor. Mas aquela efusão, aquela sensação, parece ter virado ninho, e ido embora pela praça com o fechar das janelas.
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