terça-feira, 13 de março de 2012

O Maricas


Escuta, César, não sei por onde andas agora, mas bem gostaria que lesses isto. Sim. Pois há coisas, palavras, que a gente leva conosco como mordidas, toda a vida, mas uma noite sente que deve escrevê-las, dizer a alguém, porque, se não diz, continuarão aí, doendo, cravadas na vergonha para sempre. Sim, sinto que tenho de te dizer. Escuta.
Você era diferente. Um desses meninos que não conseguem urinar com alguém ao lado. Lembro que, na lagoa, nunca ficavas nu diante de nós. Eles riam, e eu também, claro, mas lhes falava que te deixassem, que cada um é como é. E você era diferente.
Vinhas de um colégio de padres, e São Pedro devia te parecer, não sei, algo como Brobdignac. Não gostavas de subir em árvores, nem quebrar faróis com pedradas, nem apostar corridas para baixo entre as moitas do barranco. Já não recordo como foi.
Quando pequeno, se encontra qualquer razão para gostar das pessoas. Só recordo que logo éramos amigos e sempre andávamos juntos. Uma manhã até me levastes à missa. Ao passar na frente do café, o foguinho Martinez nos gozou: "Olha os noivos..."
Teu rosto ficou em chama e eu fiz meia volta, xingando-o e lhe dei de lado um soco nos dentes tão forte que machuquei a mão. Depois, querias pôr um curativo, me olhavas.
- Te feriste por mim, Abelardo.
Quando falaste, senti um frio nas costas. Pegava a minha mão e as tuas eram brancas, finas. Não sei. Excessivamente brancas, excessivamente magras.
- Solta - disse.
Quem sabe não eram as tuas mãos, mas tudo, tuas mãos, teus gestos, tua maneira de se mexer, falar. Agora penso que antes também entendia isso, e falei mesmo alguma vez que tudo isso não significava nada, era questão de educação, de andar sempre entre mulheres, entre padres. Mas eles riam e eu também, César, acabava rindo, rindo de macho que se é e o tempo passa e uma noite se torna necessário lembrar e dizer tudo.
Fomos inseparáveis. Até o dia em que aquilo se deu, te quis de fato. Inexplicável e obscuramente, como querem os que ainda estão limpos.
Gostava de auxiliar-te. Ao sair do colégio, íamos na tua casa e te ensinava o que não tinhas compreendido.
Conversávamos. Era fácil te contar e escutar o que para os outros a gente não fala. Ás vezes me fitavas com uma espécie de perplexidade, um olhar diferente; talvez o mesmo com que eu não me atrevia a te fitar. Uma tarde disseste:
- Sabes, te admiro.
Não pude suportar os teus olhos. Olhavas de frente como as crianças e dizias as coisas do mesmo modo. Era isso.
  - É um maricas.
- Não há de ser por nada que tanto cuidas dele...
E riam-se. E dava vontade de gritar que todos nós juntos não valíamos a metade do que ele valia, do que tu valias, mas naquele tempo a palavra era difícil e o riso era fácil. E também se aceita, também se escolhe e acaba, se sujando desejando a brutalidade desta noite, quando vem o negro e diz que lhe deram uma dica. Uma dica, diz, lá nas Quintas tem uma gorda que cobra cinco pesos, vamos e já aproveitamos para fazer o machão debutar, o César. E disse bacana.
- César, hoje de noite vamos sair com os rapazes. Quero que vás junto.
- Com os rapazes...?
- Sim. Que é o que há?
- Bem. vamos.
Pois não só disse bacana como te levei enganado. E fomos. E te deste conta de tudo quando chegamos no rancho. A lua enorme, lembro, alta entre as árvores.
- Abelardo, tu sabias.
- Cala a boca e entra.
- Tu sabias!
- Entra, te digo.
O marido da gorda, grandão como a porta, nos encarava velhacamente. Disse que eram cinco pesos. Cinco por cabeça, guris; sete vezes cinco, trinta e cinco. Ver a cara de Deus, tinha dito o negro. Do quarto saiu um menino, teria quatro ou cinco anos. Secando o nariz, passava as costas da mão pela boca. Na minha vida não hei de esquecer esse gesto. Seus pezinhos descalços tinham a mesma cor do chão de terra.
O negro tomou a frente. Eu sentia uma coisa, uma bola no estômago. Não me atrevia a te olhar. Os outros soltavam piadas brutais, brutais fora do costume, em vozes de segredo. Estavam, estávamos todos, assustados, como loucos. Do Roberto o fósforo tremia quando me deu fogo.
- Deve estar toda suja.
Depois o negro saiu da peça e vinha sorrindo. Triunfador. Abotoando-se.Nos piscou um olho:
- Passa tu, Cacho.
- Não, eu não. Eu depois.
Entrou o Foguinho, depois Roberto. E quando saíam, saíam diferentes. Saíam, não sei, saíam homens. Sim. Era a impressão que eu tinha.
Depois eu entrei e quando saí, tu não estavas.
- Onde está César?
- Fugiu.
E o gesto, um gesto que podia ser idêntico ao do negro, me gelou na ponta dos dedos, na cara. O vento do pátio apagou-o, pois logo eu estava fora do rancho.
- Também te assustaste, guri.
Tomando chimarrão contra uma árvore, vi o marido da gorda, com a criança brincando a seus pés.
- Que susto que nada. Estou procurando o outro, que foi embora.
- Se mandou por ali - com a mesma mão que sustinha a cuia, indicou o lugar. E a criança sorria. Para a criança também disse por ali.
Te alcancei diante do Matadouro Velho; ficaste em defesa contra uma cerca. Me olhavas. Me olhavas sempre.
- Tu sabias.
- Volta.
- Não posso, Abelardo, te juro que não posso.
- Volta ou te levo a pontapés no rabo.
A lua grande, não esqueço, branquíssima lua de verão entre árvores, e tua cara de tristeza ou vergonha, tua cara de me pedir perdão, a mim, tua bela cara iluminada de repente desfeita. A mão me queimava, mas era necessário bater, machucar, sujar-te para esquecer aquela coisa como um orgulho que me afogava.
- Bruto - disseste - Bruto de merda. Te odeio. És igual, és pior que os outros.
Não te defendeste. Levaste a mão à boca, como a criança ao sair do quarto.
Quando te afastavas, chorando, tropeçando, ainda conseguiu dizer:
- Maricas, maricas de merda.
E comecei a gritar essas palavras.
Escuta, César. É preciso que leias isto. Porque há coisas que se levam como mordidas, avivadas pela vergonha a vida inteira, há coisas pelas quais a gente sozinho se cospe na cara diante do espelho. Mas de repente, um dia, tem que dizê-las, confessá-las a alguém. Me escuta.
Aquela noite, ao sair do quarto da gorda, eu lhe pedi que, por favor, não contasse aos outros.
Porque aquela noite eu não pude. Eu também não pude.


Abelardo Castillo, tradução de Paulo Hecker Filho


Transcrito por Adriano Ribeiro   do caderno literário do extinto Lampião da Esquina.