domingo, 21 de março de 2010

Reescrevo o que gosto, letra por letra; na esperança de que meus dedos se acostumem com a beleza das palavras alheias.

Rainha Gertrudes (sobre a morte de Ofélia) :

Há um salgueiro que cresce inclinado no riacho
Refletindo suas folhas de prata no espelho das águas;
Ela foi até lá com estranhas grinaldas
De botões-de-ouro, urtigas, margaridas,
E compridas orquídeas encarnadas,
Que nossas castas donzelas  chamam dedos-de-defunto,
E a que os pastores, vulgares, dão nome mais grosseiro.
Quando ela tentava subir nos galhos inclinados,
Para aí pendurar as coroas de flores,
Um ramo invejoso se quebrou;
Ela e seus troféus floridos, ambos,
Despencaram juntos no arroio soluçante.
Suas roupas inflaram e, como sereia,
A mantiveram boiando um certo tempo;
Enquanto isso ela cantava fragmentos de velhas canções,
Inconscientes da própria desgraça
Como criatura nativa desse meio,
Criada para viver nesse elemento.
Mas não demoraria pra que suas roupas
Pesadas pela água que a encharcava,
Arrastassem a infortunada do seu canto sauve
À morte lamacenta.


Ato 4, Cena 7, Hamelt, William Shakespeare.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Eu e Laurinha!


























Ganhei o presente de atravessar os rio quase todos os dias. Grato!

Foto Val Fernandes, que me acompanha na travessia :)

Meu Solilóquio

O tempo tem passado, mas a paixão ainda é ferida. Ganhou agora uma dor fina e pálida, mesmo que ainda incessante. Que culpa tenho eu se a vida  fez de mim um garoto que trabalha a razão em lado oposto ao peito?

Sei que continuar é sofrer, mas que fazer se meu peito desabrocha em rosas todas  que me recordo sem querer.É como essas chuvas que vêm caindo por aqui. Olhamos o céu, e o sol nos engana brilhante e quente lá em cima. Ao abrirmos os olhos no segundo seguinte nascem as gotas trazendo esse pranto sereno e forte que eu pensava existir só no fundo das minhas retinas.

Um Abrir de Janelas

Hoje a Biblioteca abriu suas janelas. O dia amanheceu bem disposto de um vento frio e cálido. Por isso, resolveram os coordenadores renunciar ao ar condicionado, e deixar que a brisa do dia novo climatizasse o espaço dos livros e de seus leitores.
As janelas abertas trouxeram do verde das praças os pássaros.  Varavam o ar pelas janelas e entravam sutis. Mas depois de um tempo já estavam fazendo ninho entre Shakespeare e Vinicius de Moraes; e alguns leitores já não mais conseguiam desperceber o eco que o canto dos vários espécimes entoava. Coroando o saguão, o som tinha a amplitude dos sinos de igrejas, mas não faziam doer os ouvidos e nem o juízo. Era um canto alegre e amanhecedor.
Em pouco tempo, os interesses de todos já não eram mais os livros e suas estórias, mas sim os pássaros e  seus  cantos. Enquanto isso, eu que já havia percebido e me encantado a tempo com aquela invasão mágica, percebi um movimento gracioso de calcanhares entre as primeiras prateleiras em que eu me encontrava.
Atento, encontrei, além de mais pássaros e ninhos, duas pessoas se segurando pelas mãos. Buscavam algo que na hora eu não compreenderia. Na frente ia uma menina, a qual parecia pertencer toda a decisão da busca. E quase pisando nos calcanhares da frente, um menino que parecia tão surpreendido com a caminhada, como os outros com os passarinhos.
O passo apressava-se, e cada prateleira deixada para trás era um adeus que davam ao mundo. E me escondendo no canto dos pássaros, que ecoava cada vez mais forte e tenso como passos à procura de sossêgo, eu os vi parar.
E pararam na última estante onde só poderiam ser vistos por livros e por mim, que os via atrás dos livros de Ornitologia.  Pararam e, logo, se encostaram num desejo invejável de paixão impossível.  Os lábios se tocaram, e foi aí que eu vi literatura nos lábios alheios. Aquele beijo, entre tantos livros, me encheu de uma poesia única e imensa. Senti Federico Garcia Lorca dentro de mim. Antonio Maria pulsar nas minhas veias apaixonadas.  As palavras do Gabriel Garcia Marquez nunca fizeram tanto sentido. Vinicius estava nas minhas mãos. E as letras do Chico Buarque passavam por meus olhos contando com palavras aquela estória que eu via na minha frente.
Sim, amigos, eu vi literatura nos lábios alheios.  Estarrecido, o beijo foi andando de volta. E eu continuei no cenário daquela ilusão que nunca me pareceu tão verdadeira.  Aquele momento tomou-me durante todo o dia. E muita vezes me perguntei se os pássaros conspiraram para que aquele mar de palavras em forma  de amor se materializasse  à minha frente. Ou se teriam os amantes armado a visita dos pássaros, espalhando alpiste nas estantes, para despistar a atenção da burocracia arcaica que proíbe o beijo entre os livros, e eu apenas como um intruso de aventura alheia,  tivesse encontrado literatura onde não haveria de ter. Não sei dizer mais. Não sei pensar muita coisa agora. Não sei quem são. E nem me lembraria a face se os visse de novo.
Só sei que aquele romance visto hoje de manhã não me abandonou a retina. E ao chegar em casa corri à minha estante e tentei reviver tudo nos livros que tanto guardo. Tentativa infundada. As palavras, sim, eu compreendia melhor. Mas aquela efusão, aquela sensação, parece ter virado ninho, e ido embora pela praça com o fechar das janelas.