terça-feira, 25 de setembro de 2012

Visitar a Lapa depois de tê-la encontrada decaída e assombrada no livro Lábios que Beijei, de Aguinaldo Silva, é como retornar a um território que já foi seu.
Os arcos são meus. Essas ruas e esses mendigos, que antes foram os maestros das mesmas ruas, são conhecidos antigos e me cumprimentam como rainha. 

A Lapa, charmosa, guarda solta nas ruas seus inúmeros alemães – reis do crime e temidos por todos; são tantos. O Aguinaldo de antes não aguentaria(acredite!)
Continuam a surrupiar e deixar doidos os aguinaldos, a tal ponto que se integrem carnalmente ao sistema. Para não repetir! Não repetir! 
E são tantos aguinaldos...

Os telhados continuam sendo pulados por bandidos e amores... Débora aparece atravessando a rua, usa um cachecol, rasteiras e uma saia. Quem a vê, sabe que outrora fora um executivo descendo de taxi, que outrora fora uma bichona, que alçava voos.

Aqui as pessoas gritam quando não é assalto. Riem alto e são corteses quando a moça passa e repassa, enganada, com as rosas de seu vestido... Se acredito em entidade é porque estou na Lapa. Aqui os estrangeiros tecem seus vestidos com lenços hermès.

As moças tem braços fortes e falam escorregando a língua, preguiçosa, nos dentes inferiores. A água de suas bocas escorre, veemente, pelas encostas dos dentes e é interrompida pelo lustre grosso dos lábios. 

As janelas altas dos prédios antigos olham tudo; a vigiar que o mundo não acabe com a Lapa. E, assim, os desvalidos não fiquem sem calçadas para dormir, gringos para impressionar e esquinas... para que uma escritora deposite, suavemente, sua máquina de escrever.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Sem nome


Obnubilada, minha brasa desce cortante a rua augusta
Somos totais poderio e cantata de uma só roldana enferrujada
Quisera correr os lírios campos, mas descobrira que sem um vestido de véus
O vento não sopraria.
Sigo descendo a pedraria.
Retendo braços que não ficam quietos - de maneira alguma -
Por estarem muito perto da essência encarnada
Eu vou só.
Com os olhos secos, o peito sem jeito e a lua escondida.
Vejo, mas não há mais jeito, meu amor.
Passou.
Se pular na frente deste caminhão de lixo,
Morro físico.
E o olhar triturador do critico me perseguirá na eternidade.
-       Que me importa tudo isso?
Se meu coração se abre é por ser inumano. E só.
Continuem humanos, seu academistas miseráveis
Prefiro morrer de amor.
E os braços ao vento, como anáguas imperdoáveis.
O paraíso é não entender.
Pularei todos os estágios ingloriosos,
À procura de um gato chamado Francisco.
Só eu entendo a sua insuficiência.
Quem mais? A critica de tapa nos lombos,
Ou o tendência que tu tanto odeias.
Vai-te a merda, bocuda.
Tens razão de sobra pra me odiares.
E eu?
Que razão tenho para descer uma rua inteira
Me odiando.
Não sou mártir,
Sorvo vinho por amor a mim.
De que tira tudo isso, meus braços galopantes?
Que devo arrojar-me sem saber e entrar no negrume deste secos.
Que mereço, meu Deus?
Dois tapas e só?
Eu quero pior.

Um soco acima da minha donzelice,
E basta. Para que eu morra e renasça.
Podendo ser tudo.
No mês que vem descerei de novo a mesma rua,
A mesma lua será tetra num céu negro,
Ó Deus meu, que eu seja o mesmo,
Menos lastimoso e mais afável.
Que exista delícia nas minhas entranhas
Entre elas.
Por que agora a vontade de morrer é inteira em mim,
Embora a cachimônia seja outra.

domingo, 13 de maio de 2012

Gritar, gritar até a cratera exaurir-se. Até me secarem os ossos. Até faltar ar - mas sempre falta. Até se extinguirem as mil mazelas do corpo. Até ser, deixar de ser, raspar a cabeça e me por nua no centro da minha vida. Respira fundo, insistiu !
Joga água fria no rosto, vamos dar uma volta, é psicológico. gritar meu urro, a torrente de impropérios.

Digitei poema do desespero. Procurei .Você quis dizer: não! Não quis. Eu sou um pouco doido (e melancólico.) Preciso me aceitar assim, bate na testa,. Mas se já sou, por que de me aceitar?

Gritar, de novo, meu urro, minha torrente de impropérios. Que posso estar louca, mas que podem me enterrar sem que homem nenhum tenha se visto na brancura dos meus seios. Gritar minha culpa, que digo ser cristã, mas que dói é em minhas carnes. Gritar que é mentira! , que também eu minto. E pedir que não seja verdade. Só paranoia. Há que me afagar co'a calma, a calma, a calma, a calma dos casais. Ficar rígido. Meu coração é bom mas não aceita que o seja. Gritar o choro. Gritar a Água do meu Tietê, onde me queres levar? . Gritar Estou doente. Doente dos olhos, doente da boca, dos nervos até. Gritar que é culpa dos prédios, do céu em corredor, de ver tudo de baixo, de pisar na cabeça dos outros para entrar em casa, do demasiado cinza. Gritar que é culpa dos arquitetos e urbanista e engenheiros, - como no filme, Gritar o filme! – que é culpa do prefeito, gritar

A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.

terça-feira, 13 de março de 2012

O Maricas


Escuta, César, não sei por onde andas agora, mas bem gostaria que lesses isto. Sim. Pois há coisas, palavras, que a gente leva conosco como mordidas, toda a vida, mas uma noite sente que deve escrevê-las, dizer a alguém, porque, se não diz, continuarão aí, doendo, cravadas na vergonha para sempre. Sim, sinto que tenho de te dizer. Escuta.
Você era diferente. Um desses meninos que não conseguem urinar com alguém ao lado. Lembro que, na lagoa, nunca ficavas nu diante de nós. Eles riam, e eu também, claro, mas lhes falava que te deixassem, que cada um é como é. E você era diferente.
Vinhas de um colégio de padres, e São Pedro devia te parecer, não sei, algo como Brobdignac. Não gostavas de subir em árvores, nem quebrar faróis com pedradas, nem apostar corridas para baixo entre as moitas do barranco. Já não recordo como foi.
Quando pequeno, se encontra qualquer razão para gostar das pessoas. Só recordo que logo éramos amigos e sempre andávamos juntos. Uma manhã até me levastes à missa. Ao passar na frente do café, o foguinho Martinez nos gozou: "Olha os noivos..."
Teu rosto ficou em chama e eu fiz meia volta, xingando-o e lhe dei de lado um soco nos dentes tão forte que machuquei a mão. Depois, querias pôr um curativo, me olhavas.
- Te feriste por mim, Abelardo.
Quando falaste, senti um frio nas costas. Pegava a minha mão e as tuas eram brancas, finas. Não sei. Excessivamente brancas, excessivamente magras.
- Solta - disse.
Quem sabe não eram as tuas mãos, mas tudo, tuas mãos, teus gestos, tua maneira de se mexer, falar. Agora penso que antes também entendia isso, e falei mesmo alguma vez que tudo isso não significava nada, era questão de educação, de andar sempre entre mulheres, entre padres. Mas eles riam e eu também, César, acabava rindo, rindo de macho que se é e o tempo passa e uma noite se torna necessário lembrar e dizer tudo.
Fomos inseparáveis. Até o dia em que aquilo se deu, te quis de fato. Inexplicável e obscuramente, como querem os que ainda estão limpos.
Gostava de auxiliar-te. Ao sair do colégio, íamos na tua casa e te ensinava o que não tinhas compreendido.
Conversávamos. Era fácil te contar e escutar o que para os outros a gente não fala. Ás vezes me fitavas com uma espécie de perplexidade, um olhar diferente; talvez o mesmo com que eu não me atrevia a te fitar. Uma tarde disseste:
- Sabes, te admiro.
Não pude suportar os teus olhos. Olhavas de frente como as crianças e dizias as coisas do mesmo modo. Era isso.
  - É um maricas.
- Não há de ser por nada que tanto cuidas dele...
E riam-se. E dava vontade de gritar que todos nós juntos não valíamos a metade do que ele valia, do que tu valias, mas naquele tempo a palavra era difícil e o riso era fácil. E também se aceita, também se escolhe e acaba, se sujando desejando a brutalidade desta noite, quando vem o negro e diz que lhe deram uma dica. Uma dica, diz, lá nas Quintas tem uma gorda que cobra cinco pesos, vamos e já aproveitamos para fazer o machão debutar, o César. E disse bacana.
- César, hoje de noite vamos sair com os rapazes. Quero que vás junto.
- Com os rapazes...?
- Sim. Que é o que há?
- Bem. vamos.
Pois não só disse bacana como te levei enganado. E fomos. E te deste conta de tudo quando chegamos no rancho. A lua enorme, lembro, alta entre as árvores.
- Abelardo, tu sabias.
- Cala a boca e entra.
- Tu sabias!
- Entra, te digo.
O marido da gorda, grandão como a porta, nos encarava velhacamente. Disse que eram cinco pesos. Cinco por cabeça, guris; sete vezes cinco, trinta e cinco. Ver a cara de Deus, tinha dito o negro. Do quarto saiu um menino, teria quatro ou cinco anos. Secando o nariz, passava as costas da mão pela boca. Na minha vida não hei de esquecer esse gesto. Seus pezinhos descalços tinham a mesma cor do chão de terra.
O negro tomou a frente. Eu sentia uma coisa, uma bola no estômago. Não me atrevia a te olhar. Os outros soltavam piadas brutais, brutais fora do costume, em vozes de segredo. Estavam, estávamos todos, assustados, como loucos. Do Roberto o fósforo tremia quando me deu fogo.
- Deve estar toda suja.
Depois o negro saiu da peça e vinha sorrindo. Triunfador. Abotoando-se.Nos piscou um olho:
- Passa tu, Cacho.
- Não, eu não. Eu depois.
Entrou o Foguinho, depois Roberto. E quando saíam, saíam diferentes. Saíam, não sei, saíam homens. Sim. Era a impressão que eu tinha.
Depois eu entrei e quando saí, tu não estavas.
- Onde está César?
- Fugiu.
E o gesto, um gesto que podia ser idêntico ao do negro, me gelou na ponta dos dedos, na cara. O vento do pátio apagou-o, pois logo eu estava fora do rancho.
- Também te assustaste, guri.
Tomando chimarrão contra uma árvore, vi o marido da gorda, com a criança brincando a seus pés.
- Que susto que nada. Estou procurando o outro, que foi embora.
- Se mandou por ali - com a mesma mão que sustinha a cuia, indicou o lugar. E a criança sorria. Para a criança também disse por ali.
Te alcancei diante do Matadouro Velho; ficaste em defesa contra uma cerca. Me olhavas. Me olhavas sempre.
- Tu sabias.
- Volta.
- Não posso, Abelardo, te juro que não posso.
- Volta ou te levo a pontapés no rabo.
A lua grande, não esqueço, branquíssima lua de verão entre árvores, e tua cara de tristeza ou vergonha, tua cara de me pedir perdão, a mim, tua bela cara iluminada de repente desfeita. A mão me queimava, mas era necessário bater, machucar, sujar-te para esquecer aquela coisa como um orgulho que me afogava.
- Bruto - disseste - Bruto de merda. Te odeio. És igual, és pior que os outros.
Não te defendeste. Levaste a mão à boca, como a criança ao sair do quarto.
Quando te afastavas, chorando, tropeçando, ainda conseguiu dizer:
- Maricas, maricas de merda.
E comecei a gritar essas palavras.
Escuta, César. É preciso que leias isto. Porque há coisas que se levam como mordidas, avivadas pela vergonha a vida inteira, há coisas pelas quais a gente sozinho se cospe na cara diante do espelho. Mas de repente, um dia, tem que dizê-las, confessá-las a alguém. Me escuta.
Aquela noite, ao sair do quarto da gorda, eu lhe pedi que, por favor, não contasse aos outros.
Porque aquela noite eu não pude. Eu também não pude.


Abelardo Castillo, tradução de Paulo Hecker Filho


Transcrito por Adriano Ribeiro   do caderno literário do extinto Lampião da Esquina.

domingo, 15 de janeiro de 2012

"Para te escrever eu me perfumo inteiro"

"Eu te conheço  até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Só há uma coisa me separa de você: o ar entre nós dois. As vezes para ultrapassar este quase cruel afastamento, eu respiro na tua boca que então me respira e eu te respiro. Mas só por um único instante, senão sufocaríamo-nos, seria o castigo que se recebe quando um tenta ser o outro."




C. L