Este retrato de famíliaEstá um tanto empoeirado.Já não se vê no rosto do paiQuanto dinheiro ele ganhou.Nas mãos dos tios não se percebemAs viagens que ambos fizeram.A avó ficou lisa, amarela,Sem memórias da monarquia.Os meninos, como estão mudados.O rosto de Pedro é tranquilo,Usou os melhores sonhos.E João não é mais mentiroso.O jardim tornou-se fantástico.As flores são placas cinzentas.E a areia, sob pés extintos,É um oceano de névoa.No semicírculo das cadeirasNota-se um certo movimento.As crianças trocam de lugar,Mas sem barulho: é um retrato.Vinte anos é um grande tempo.Modela qualquer imagem.Se uma figura vai murchando,Outra, sorrindo, se propõe.Esses estranhos assentados,Meus parentes? Não acredito.São visitas se divertindoNuma sala que se abre pouco.Ficaram traços de famíliaPerdidos no jeito dos corpos.Bastante para sugerirQue um corpo é cheio se surpresas.A moldura deste retratoEm vão prende seus personagens.Estão ali voluntariamente,Saberiam – se preciso – voar.Poderiam subtilizar-seNo claro-escuro do salão,Ir morar no fundo dos móveisOu no bolso de velhos coletes.A casa tem muitas gavetasE papéis, escadas compridas.Quem sabe a malícia das coisas,Quando a matéria se aborrece?O retrato não me responde,Ele me fita e se contemplaNos meus olhos empoeirados.E no cristal se multiplicamOs parentes mortos e vivos.Já não distingo os que se foramDos que restaram. Percebo apenasA estranha ideia de famíliaviajando através da carne.Carlos Drummond de Andrade
viva vó creuza!!!! "o homem é o que tem nas mãos"
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2 comentários:
Este retrato de família
Está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa.
No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio se surpresas.
A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam – se preciso – voar.
Poderiam subtilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha ideia de família
viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade
viva vó creuza!!!! "o homem é o que tem nas mãos"
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