quinta-feira, 2 de julho de 2009

Cante-se uma única canção.

Cantar não era com ele.
Nunca soube nada sobre afinação, nem a dos outros nem a sua. Descobriu não cantar com os amigos, sempre que cantavam "parabéns", alguém o olhava com reprovação. Não é assim, diziam. Também nunca teve ritmo. Era sempre a palma descompassada, atrasada ou acelerada no meio das mãos, mas nunca a certa.

Um dia cantando para um amor, ouviu um elogio. Você canta bem, disse. Não se sabe se o elogio foi de fato verdadeiro, ou foi um delírio de amor. Desses famosos por cegar e, possivelmente, nesse caso ensurdecer. Mas o elogio prevaleceu a qualquer teoria contraria. Feliz ficou. Entoou outras canções, mas com elas não vinham elogios. Cantou a mesma que cantou ao amor. E percebeu.

Era ela,a musica, que se vestia ao seu timbre. Não ele que com noções de voz cantava ela. A música cantava a sua voz. Por isso, só aquela melodia funcionava. Ele continuava ignorante, sem ritmo e desafinado. Agora era a música quem cantava ele, ela quem fazia o trabalho. A partir da descoberta passou a cantar a mesma canção.
Sempre.


As coisas foram mudando na sua vida.
Coisas ruins aconteciam sem saber por quê. Chuvas nas horas erradas, palavras confusas, ações incompreensíveis, tudo o fazia mal.
Por isso, parou de cantar.

No mesmo momento, as chuvas pararam, palavras foram esclarecidas e as ações compreendidas. Traumatizou.
E devaneando descobriu a razão do distúrbio.
Era a música, aquela que o vestia tão bem. As suas letras eram carregadas de confissões. De medo. E por um tempo ousou dizer, maldições. A música era maldita, dizia a si mesmo. Não voltou a cantar com a beleza de antes.
Nem aquela, nem as outras.

Quis o destino que a única melodia suave à sua voz fosse por motivos desconhecidos dona das artes de fazer mal, de mal dizer.

Ficou fadado por toda vida a não cantar, a manter-se calado inclusive nas rodas de parabéns.

3 comentários:

Rodrigo Mercadante disse...

"o sabiá vaidoso"

"um sabiá vaidoso do seu canto,
se julgava um maestro quase santo
e de todas as aves a primeira
na linda copa de uma laranjeira

seu gorjeio repleto de doçura
despertava saudade, amor, ternura
de orgulhoso e vaidoso ele pensava
que o mundo inteiro a ele se curvava,
com a força vibrante de harmonia
novas notas criou naquele dia

um simples passarinho, uma avezinha,
que nem sequer no mundo um nome tinha,
por direito que assiste ao passarinho
naquela copa fez também seu ninho
e modesto, com muita singeleza,
obedecendo à sábia natureza,
cheio de vida o seu biquinho abriu
piu, piu, piu, piu, piu
piu, piu, piu, piu, piu
piu, piu, piu, piu, piu.

o sabiá se achando enfurecido,
para ele falou, seu atrevido!
com este canto que soltaste agora
tu desvirtuas minha voz sonora,
com a tua cantiga dissonante
tu não passas de um bicho ignorante,
eu não quero te ouvir perto de mim,
quem te ensinou cantar feio assim?

do passarinho pobre de harmonia,
mas muito rico de filosofia,
logo a resposta o sabiá ouviu:
– este meu canto, piu, piu, piu, piu, piu
que o destino fiel me permetiu
para ninar os filhotinhos meus,
seu sabiá quem me ensinou foi deus!"

Patativa do Assaré

Joabes Guedes disse...

É meu caro, você se superou nesse texto, muito legal mesmo....

Veriana Ribeiro disse...

gostei. =)